quinta-feira, 9 de junho de 2011

Contra bactéria do piriri de sangue, bosta de vaca para todos?

Sergio U. Dani.
(ex-vaqueiro, atualmente médico de bicho-gente, cientista e docente da Universidade de Heidelberg, Alemanha).


Recebi e-mails de parentes e amigos preocupados com a atual epidemia de disenteria hemorrágica e a síndrome hemolítica urêmica aqui na Alemanha. Respondi que essa epidemia é uma espécie de efeito colateral da industrialização e da urbanização. Vou explicar melhor.

O tipo de bactéria Escherichia coli que causa essas doenças pertence à flora normal do trato digestivo de alguns animais domésticos como vacas, ovelhas e cabras (1). Nesses animais, a bactéria não causa doença. Quem vive no campo em contato com esses bichos, respirando e engolindo a poeira da bosta (2) deles, bebendo do leite deles no curral, também não fica doente por causa da bactéria. As vacas e o pessoal do campo adquirem uma resistência imunológica contra a bactéria. Esse fenômeno vale para várias bactérias e virus (3,4), e não é à toa que damos o nome de vacina aos preparados que tomamos para prevenir doenças: vacca, em latim é vaca mesmo, e vaccinae significa “o que vem da vaca”; Variolae vaccinae, "a varíola da vaca". O cientista astuto que descobriu a primeira vacina simplesmente observou que os homens e mulheres que cuidavam do gado, especialmente as mulheres que ordenhavam as vacas eram imunes ao virus da varíola humana. Esses vaqueiros e vaqueiras tinham contato direto com um virus das vacas que não causava doença neles, mas servia como vacina. O sistema imunológico dos vaqueiros produzia anticorpos contra a varíola da vaca, e esses anticorpos funcionavam também contra o virus da varíola humana. Práticas rudimentares de vacinação já eram conhecidas na Turquia, há pelo menos 3 séculos, mas o batismo e a validação científica da vacina coube ao médico Edward Jenner há mais de 200 anos. Na época, Jenner foi ridicularizado até pelos colegas. Passados mais de dois séculos, continuamos às voltas com as vacas e seus micróbios. Ou, mais precisamente, com a falta deles. Depois de mais de 10 mil anos de convivência entre homens e vacas, agora elas ficam lá longe no campo e nos currais com toda aquela bosta enquanto nós, urbanóides-sem-bosta, ficamos encurralados nas cidades estéreis. Longe das vaquinhas, suas bostas e seus micróbios, nosso sistema imune fica bobo. Para piorar a situação, muitas mães não amamentam seus filhos, preferem dar a eles fórmulas com selo de qualidade, certificado de boa origem e garantia de limpeza e esterilidade. O colostro, aquele leite gordo e escuro dos primeiros dias depois do parto tem anticorpos que protegem e educam o intestino e o sistema imunológico das crianças. As mães que respiram e engolem poeira de bosta de vaca produzem anticorpos contra os micróbios das vacas e transmitem esses anticorpos aos fetos pela placenta e liberam esses anticorpos no colostro. Sem bosta, sem colostro, sem proteção. Nós urbanóides nos isolamos da natureza em nossos currais estéreis e assim nos tornamos estranhos a ela, e ela torna-se estranha a nós. Em vez de entender isso, alguns preferem inventar lorotas, como a tese da conspiração dos laboratórios secretos ou o bioterrorismo. Bioterrorismo é viver longe da bosta da vaca. Por isso recomenda-se um quintal em cada casa e uma vaquinha em cada quintal. Não sendo possível para a maioria das pessoas, serviria a substituição por visitas regulares aos currais ou aos zoológicos, ou o consumo de leite e derivados in natura, produzidos artesanalmente. Na falta deles, serviria tratar de plantinhas em casa com estrume de vaca com selo "bio", certificado de boa origem fazendeira e garantia de sujeira. Acredite: as plantinhas iriam agradecer, e você também. Quanto aos antibióticos para quem tem piriri, não devem ser usados porque matam as bactérias dentro das tripas, e a morte das bichinhas libera mais toxina que causa mais estrago em quem já está doente. Hidrate-se com soro caseiro (5) e procure seu médico.




Referências, leituras sugeridas e notas:


(1) O Instituto Robert Koch (RKI) confirma em seu site oficial http://www.rki.de/cln_145/nn_205760/DE/Home/Info-HUS.html consultado hoje que as bactérias E. coli enteropatogênicas que estão causando a atual epidemia de síndrome hemorrágica-urêmica (HUS) na Alemanha respondem pelo nome de “EHEC O104:H4” e pertencem à flora normal do trato digestivo de animais ruminantes como vacas, ovelhas e cabras. As bactérias EHEC causadoras da HUS são transmitidas direta ou indiretamente para o homem a partir dos animais. A transmissão para o homem ocorre via fecal-oral, através da ingestão do agente causal decorrente do contato com fezes dos animais e alimentos ou água contaminados, mas também através de contato direto de pessoa para pessoa (geralmente infecção fecal-oral por falta de higiene após defecação, por exemplo). Ainda não está claro se a bactéria faz parte da flora intestinal humana normal, mas o mesmo site do RKI fornece uma indicacao indireta de que essa possibilidade existe. Essa cepa de E. coli apresenta resistência contra diversos tipos de antibióticos, inclusive antibióticos de terceira geração geralmente usados em seres humanos, o que sugere que a bactéria seja “doméstica”. Geralmente as bactérias selvagens são sensíveis aos antibióticos porque simplesmente seus hospedeiros não tomam antibióticos como nós humanos fazemos, ou como fazemos com nossos animais domésticos, muitas vezes sem indicação ou controle. Não havendo pressão de seleção (o antibiótico), não existe razão para a fixação dos fatores genéticos de resistência na linhagem da bactéria. Como esses fatores de resistência, DNA na forma de cromossomos ou plasmídeos que carregam a informação genética para resistência podem ser transmitidos entre as bactérias e entre certos vírus (os chamados “bacteriofagos”) e as bactérias que esses virus parasitam, então os fatores de resistência podem ser transmitidos e conservados ("fixados") em um ambiente (intestino humano) em que a pressão de seleção (uso indiscriminado de antibióticos) seja significativa.


(2) Bosta é o nome que o pessoal do campo dá para o cocô da vaca.


(3) Porter P, Parry SH, Allen WD. 1977. Significance of immune mechanisms in relation to enteric infections of the gastrointestinal tract in animals. Ciba Found Symp. 26-28 (46):55-75


(4) Currie CG, McCallum K, Poxton IR. 2001. Mucosal and systemic antibody responses to the lipopolysaccharide of Escherichia coli O157 in health and disease. J Med Microbiol. 50(4):345-54.


(5) Uma colher de chá de açúcar ou mel e uma colherinha de sal em um litro de água filtrada ou fervida. Consuma à vontade.

4 comentários:

  1. Sérgio,
    Infelizmente, o problema dessa cepa de E. coli entero-hemorrágica é mais complicado. É uma bactéria geneticamente modificada, o DNA já foi levantado, não é aquela que habita normalmente o intestino humano e, segundo vc, o das vacas. Tem várias características diferentes da E. coli habitual, inclusive resistência aos antibióticos normalmente ativos nas coli comuns. Portanto, mesmo que fosse possível essa vacina natural, que vc menciona, seria para a E. coli corriqueira, não para a modificada. De resto, essa história de vacina natural é discutida, muitos pesquisadores não a aceitam. Foi objeto de muita discussão relativa ao tétano. Quanto `a vacina natural para a varíola, Jenner observou que os ordenhadores ficavam vacinados, não os circunstantes. Essa foi a diferença que ele valorizou. Isso porque naqueles, feridas, mesmo pequenas, nas mãos, facilitavam a inoculação a partir das tetas das vacas que apresentavam lesões variolosas decorrentes de um virus vacum atenuado. Quem dera que tudo fosse assim tão simples! Talvez a Europa não tivesse penado com epidemias sucessivas de Peste Negra, ou de cólera! Epidemias que não perdoavam habitantes das cidades nem do campo.

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  2. Obrigado por participar dessa discussao! A discussao sobre as epidemias da Peste Negra e do Cólera no passado sao interessantes, mas vou me ater ao caso da E. coli já que os temas aqui sao os micróbios da flora intestinal normal de vacas e homens, e a relacao micróbios-hospedeiros nesses casos.

    O Instituto Robert Koch confirma em seu site oficial (1) que as bactérias E. coli enteropatogênicas que estao causando a atual epidemia de síndrome hemorrágica-urêmica (HUS) na Alemanha respondem pelo nome de “EHEC O104:H4” e sao da flora normal de animais ruminantes: “Die das HUS verursachenden EHEC-Bakterien werden direkt oder indirekt vom Tier auf den Menschen übertragen. Als Reservoir gelten Wiederkäuer, vor allem Rinder, Schafe, Ziegen. Die Übertragung auf den Menschen erfolgt fäkal-oral, wobei die Erregeraufnahme über den Kontakt mit Tierkot, über kontaminierte Lebensmittel oder Wasser erfolgt, aber auch durch direkten Kontakt von Mensch zu Mensch (Schmierinfektion).“ (1) (Traducao: As bactérias EHEC causadoras da HUS sao transmitidas direta ou indiretamente para o homem a partir dos animais. Os reservatórios naturais sao ruminantes, especialmente vacas, ovelhas e cabras. A transmissao para o homem ocorre via fecal-oral, através da ingestao do agente causal decorrente do contato com fezes dos animais e alimentos ou água contaminados, mas também através de contato direto de pessoa para pessoa (geralmente infeccao fecal-oral por falta de higiene após defecacao, por exemplo).

    Se a bactéria faz parte da flora humana normal, ainda nao está claro, mas o mesmo site do IRK fornece uma indicacao indireta de que essa possibilidade existe: “Der Stamm zeigt eine erhöhte Resistenz gegen Cephalosporine der 3. Generation (ESBL), sowie eine breite Mehrfachresistenz u.a. gegen Trimethoprim/Sulfonamid und Tetrazykline. Dies ist allerdings klinisch nicht bedeutsam, da EHEC-Infektionen in der Regel nicht mit Antibiotika behandelt werden. Eine antibakterielle Therapie kann die Bakterienausscheidung verlängern und zur Stimulierung der Toxinbildung führen.“ (1) Traduzindo resumidamente, essa cepa de E. coli apresenta resistência contra diversos tipos de antibióticos, inclusive antibióticos de terceira geracao usados em seres humanos, o que sugere que a bactéria seja “doméstica”. Geralmente as bactérias selvagens sao sensíveis aos antibióticos, porque simplesmente seus hospedeiros nao tomam antibióticos como nós humanos fazemos, ou como fazemos com nossos animais domésticos, muitas vezes sem indicacao ou controle. Nao havendo pressao de selecao (o antibiótico), geralmente nao existe fixacao dos fatores genéticos de resistencia (DNA) na linhagem da bactéria. Como esses fatores de resistência podem ser transmitidos entre as bactérias e entre certos vírus chamados “bacteriofagos” e as bactérias que esses virus parasitam, entao os fatores genéticos de resistência podem ser transmitidos em um ambiente (intestino humano) em que a pressao de selecao (uso indiscriminado de antibióticos) seja significativa.

    Referencia:
    (1) http://www.rki.de/cln_145/nn_205760/DE/Home/Info-HUS.html, consultado hoje.

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  3. Sérgio e ai. Voce acha que procede a informação?

    http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/testes+da+alemanha+voltam+a+apontar+brotos+como+causa+da+e+coli/n1597020840412.html

    Colocaram a culpa nos brotos de feijão.
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    RESPOSTA:

    É claro que a CULPA não é do broto de feijão, como pode, o coitado ser comido e ainda levar a culpa?

    Então, de quem é a CULPA?

    A CULPA é de quem não atuou preventivamente nas CAUSAS.

    A CAUSA PRIMÁRIA é a bactéria que contaminou o broto de feijão e a CAUSA SECUNDÁRIA é o despreparo do sistema imunológico de quem comeu o broto de feijão contaminado.

    Lista dos CULPADOS, em tese:

    . as vacas, ovelhas e cabras, por existirem e cagarem. Se elas não existissem e não cagassem, não teria essa bactéria E. coli enteropatogênica que é flora normal do trato digestivo delas, e o mundo estaria livre da bosta infectada desses bichos. Por outro lado, não teríamos leite, queijo, couro, gelatina, carne, enzimas, estrume de primeira qualidade como adubo para a produção vegetal e animal, etc. Então perdoemos as vacas por sua parcela de culpa.

    . os produtores rurais e os órgãos de fiscalização agropecuária, que não controlaram o uso de adubo e água contaminada com coliformes para adubar o feijão e outras hortaliças que são consumidas cruas. Se fosse proibido usar estrume de vaca para adubar hortaliça, o preço das hortaliças aumentaria, a qualidade das hortaliças cairia e o meio-ambiente ficaria mais poluído por causa da necessidade de aumento de produção e consumo dos adubos não-orgânicos. Então os produtores rurais e os órgãos de fiscalização agropecuária estão perdoados.

    . os cozinheiros, donos de restaurantes, donas-de-casa e consumidores finais, que não lavaram os brotos de feijão numa imersão em água com 10% de vinagre antes dos brotos serem consumidos. Esses não têm perdão.

    . os pais e professores, que não ensinaram medidas de higiene para os filhos, como lavar as mãos e os alimentos antes de serem consumidos, conviver com a natureza para adquirir imunidade contra microorganismos, cultivar plantas nos jardins e nos vasos usando estrume de vaca, etc. Esses não têm perdão.

    . os médicos humanos e veterinários e a indústria de alimentos que usam antibióticos indiscriminadamente, promovendo o fenômeno da multi-resistência das bactérias às drogas e causando desequilíbrios micro-ambientais. Esses também não têm perdão.

    . a urbanização e a industrialização sem controle e seus autores técnicos, políticos e legislativos, que roubaram das pessoas o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado, incluido aqui o contato direto com a natureza e seus micróbios, condição essencial para a aquisição da imunidade. Isso não tem perdão.

    . o próprio consumidor final, que não aprendeu a viver em sociedade e cultiva a ignorância, a preguiça, a indisciplina e, a negligência. Esse é ao mesmo tempo culpado e vítima.

    Enquanto não se corrigirem esses culpados, continuaremos tendo epidemias e mortes. Não é a primeira nem a última vez que temos E. coli enteropatogênica em broto de feijão na Alemanha e vários outros países.

    Sobre esse assunto, leiam também meu artigo em http://brasileirosparaomundo.blogspot.com/2011/06/contra-bacteria-do-piriri-bosta-de-vaca.html

    Abraços,
    Sergio

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  4. OI Sérgio,

    a bactéria poderia contaminar qualquer vegetal então. Mas essa bactéria seria a mesma do intestino dos animais? Ela parece ser mais "forte", modificada.
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    RESPOSTA:

    A 'força' ou 'modificação' que você menciona para esta Escherichia coli é a presença de DNA que codifica para uma toxina de outra bactéria, a Shigella. Isso não significa grande coisa, porque é muito comum que bactérias do trato intestinal 'troquem' de DNA entre si, seja através de conjugação (uma espécie de 'sexo' entre bactérias da mesma espécie) ou através de 'injeção' ou 'transfecção' por um bacteriofago, uma espécie de virus que parasita bactérias e que parece uma 'nanoseringa' que injeta DNA para dentro da bactéria. Esse virus pode injetar DNA emprestado de outras bactérias, por exemplo parte do DNA da Shigella, para dentro da E. coli. Como existem zilhões de bactérias no trato intestinal, mesmo pequenas taxas de conjugação ou transfecção produzem bactérias recombinantes ou 'modificadas' em pequenas quantidades praticamente todo dia. Por isso, falar em 'DNA modificado' ou 'DNA manipulado' é chover no molhado, não tem consequencia prática ou problema nenhum, em princípio.

    O problema só acontece quando um tipo de bactéria predomina sobre os outros tipos de bactérias da flora normal. O que determina se uma bactéria vai predominar sobre as formas normais ou comuns de bactérias é o velho mecanismo da seleção natural. Se o DNA da bactéria contiver elementos de resistência aos antibióticos, por exemplo, e o médico humano ou veterinário ou a indústria de alimentos usarem antibióticos indiscriminadamente, então as bactérias recombinantes resistentes vão simplesmente predominar sobre as bactérias não resistentes. As bactérias resistentes 'levam vantagem' de seleção sobre as não resistentes. Se, além disso, a bactéria for 'estranha' para o organismo ou seja, se o organismo não apresentar resistência ou imunidade natural contra a bactéria, aí é que a bactéria cresce mesmo, causando um verdadeiro micro-desequilíbrio ecológico no mundo das tripas. Esse desequilíbrio ecológico ou 'desarranjo intestinal' é a própria doença.

    Tudo indica que foi isso o que aconteceu nesta epidemia de E. coli enteropatogenica aqui na Alemanha: aquisição de multiresistência a drogas em uma bactéria da flora intestinal normal de ruminantes estranha aos urbanóides. A bactéria predomina sobre as demais graças à vantagem seletiva conferida pelos antibióticos e pelo despreparo imunológico dos urbanóides, dando como resultado o 'desarranjo intestinal'. Dar antibiótico de comer para esse bichinho só agrava o problema da seleção. O certo é tratar preventivamente com bosta de vaca certificada, conforme sugerido no meu artigo, como medida de aumento da biodiversidade bacteriana.

    Esse negócio de ambiente ecologicamente equilibrado é muito sério e abrangente. Temos direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a começar de dentro das nossas tripas.

    Abs.,
    Sergio

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