domingo, 6 de abril de 2014

Carmagedom e a imobilidade urbana

Por José Eustáquio Diniz Alves

Publicado em março 14, 2014 em: 
http://www.ecodebate.com.br/2014/03/14/carmagedom-e-a-imobilidade-urbana-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

Armagedon é um termo bíblico para indicar uma batalha final, algo como o fim do mundo. Em termos contemporâneos o Armagedom tem sido associado às possibilidades de catástrofe, como uma guerra nuclear e outros eventos de extrema gravidade.

Exatamente porque o termo é carregado de dramaticidade que foi cunhada a expressão “Carmagedom”, significando que o excesso de carros conjugado com a falta de infraestrutura viária está provocando uma batalha final contra a mobilidade urbana. A vida nas cidades, com seus congestionamentos crescentes e as dificuldades de deslocamento, está se tornando um inferno.

A Revista Estudos Avançados, da USP (Estud. av. vol.27 no. 79 São Paulo, 2013) publicou vários artigos sobre a questão da mobilidade urbana e o direito à cidade. O artigo do urbanista Jorge Wilheim (que morreu no dia 14/02/2014, aos 85 anos, depois de ter sofrido um acidente de carro em dezembro passado), mostra que na Grande São Paulo ocorrem 35 milhões de deslocamentos, sendo 23,51 milhões somente na capital. Segundo o autor, “o grave congestionamento de todos os acessos urbanos a rodovias permite antever, em curtíssimo prazo, uma situação caótica de paralisação diária do trânsito à entrada e saída da cidade”.

Segundo o Ipea, o Brasil possui 50,2 milhões de automóveis, 19,9 milhões de motos, 7,9 milhões de outros veículos motorizados. Em São Paulo, eram 40 veículos para 100 pessoas, onde a velocidade média dos automóveis e ônibus é de apenas 22 quilômetros por hora, com congestionamentos de 120 quilômetros. As carroças andavam mais rápido na antiga Vila de Piratininga. Dados do Detran de São Paulo mostram que 130 mil novos automóveis foram registrados na cidade em 2013, o maior crescimento da frota em três anos. Com isso, a capital fechou o ano com 5,4 milhões de carros. A cidade tem hoje 11,8 milhões de habitantes – o que significa uma média de um carro a cada duas pessoas.

Muito carro e pouca infraestrutura significa vários tipos de problemas. As taxas de acidentes com veículos no Brasil (22,5 mortes por 100 mil pessoas) são mais altas que na Índia (18,9), na China (20,5) e o dobro dos Estados Unidos (11,4). As perdas no trânsito em São Paulo chegam a R$ 40 bilhões por ano; cada cidadão deixa de ganhar ou aplicar R$ 3,6 mil enquanto preso em congestionamentos. O setor de transporte é o segundo maior emissor de poluentes (7% a 9%); 68% dessas emissões se devem ao transporte individual, 32% ao coletivo. Mas só 3,8% dos 5.565 municípios têm planejamento para a mobilidade urbana, que a legislação exige – embora recursos federais de R$ 90 bilhões tenham ido para o setor no ano de 2009.

O jornalista Washington Novaes comenta a situação do caos urbano: “Quem convencerá o poder público a mudar esse quadro, principalmente em vésperas de eleição? Mas os números e argumentos estão aí. E não há como contestá-los. Podem levar os não beneficiários dos privilégios a também mudar o quadro eleitoral. Ou ocupar as ruas de novo”.

O problema é que o poder público é o principal culpado da situação. Os governos petistas (Lula e Dilma) adotaram diversas medidas para ampliar o acesso ao veículo particular, com o argumento da democratização da posse do automóvel e a ampliação do consumo da classe média. Mas em vez de investir em infraestrutura viária, o governo fez desonerações fiscais e ficou sem dinheiro para viabilizar a liberação do tráfico. Além disto o governo tem evitado o reajuste da gasolina, provocando um aumento do consumo, déficits crescentes na balança comercial e sérios problemas no orçamento da Petrobras.

Como disse o economista francês François Chesnais, em entrevista ao IHU (06/03/2014): “A indústria automobilística foi escolhida como o motor do crescimento doméstico e mantida neste papel apesar da visível perda do seu poder e dos problemas sistêmicos urbanos de grande magnitude nas cidades”. O governo abriu mão de quase R$ 12 bi do imposto da gasolina, cujo objetivo era investir em infraestrutura de transportes. O país deixou de arrecadar também outros R$ 11 bilhões com a redução da tributação sobre o automóvel. Somando tudo, foram quase R$ 23 bi que o país gastou em subsídios para a classe média ficar presa nos congestionamentos.

Também os empresários reclamam da dificuldade de circulação de cargas urbanas que inviabiliza o sistema just-in-time, que poderia proporcionar ganhos no processo produtivo através da redução de estoques e da diminuição no tamanho dos lotes, mas requer uma maior frequência de entregas e, portanto, um maior número de viagens automotivas. Assim, o aumento da participação de veículos de carga cria novos conflitos, além da disputa por vagas em estacionamento e espaço nas vias, entre veículos particulares, ônibus, motos, vans e caminhões de diversas capacidades de carga.

Mas a imobilidade urbana prejudica toda a população. Os dados do censo demográfico 2010, do IBGE, mostram que, entre as pessoas com alguma ocupação, 31,03% dos residentes na capital paulista e 25,3% dos fluminenses, demoram mais de uma hora no transporte para o trabalho. Ou seja, são pessoas que gastam mais de duas horas por dia para se locomover da casa para o emprego e do emprego para casa.

Estas mais de duas horas desperdiçadas no trânsito diariamente, não são apenas jogadas fora, mas representam um estresse muito grande para as pessoas, com reflexo negativo na dinâmica das empresas, das famílias e dos indivíduos. Duas horas perdidas por dia multiplicado por milhões de pessoas são um montante imenso de tempo que poderia ser usado para aumentar a produção econômica, a educação, a saúde ou mesmo o lazer e o descanso.

O Brasil é apenas um pequeno exemplo da civilização do automóvel e dos combustíveis fósseis que ocupa as ruas e lançam CO2 na atmosfera, acelerando o aquecimento global. O mundo já tem mais de 1 bilhão de veículos e pode chegar a 2 bilhões até 2030, segundo SPERLING e GORDON (2009). Mas reportagem da Bloomberg (24/02/2014) mostra que o mundo pode deixar de produzir tantos veículos como previsto, pois está se chegando ao “Pico do Carro” (‘Peak Car’) na era do Pico do Petróleo.

A perda de mobilidade urbana, o custo excessivo do transporte público e privado, a má qualidade dos serviços de transporte, a poluição, as mortes e acidentes e o desperdício de tempo nos deslocamentos representam um retrocesso na qualidade de vida e podem comprometer o bem-estar geral das pessoas. O direito à cidade está se transformando em um “carmagedon” que engarrafa e mata a mobilidade, inviabilizando o pleno desfrute dos espaços públicos urbanos.

Referências:

Jorge Wilheim. Mobilidade urbana: um desafio paulistano. Revista Estud. av. vol.27, no.79, São Paulo, 2013  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000300002

Washington Novaes. Panorama dos privilégios no setor dos transportes, EcoDebate, RJ, 27/01/2014
http://www.ecodebate.com.br/2014/01/27/panorama-dos-privilegios-no-setor-dos-transportes-artigo-de-washington-novaes/

SPERLING, Daniel, GORDON, Deborah Two Billion Cars: Driving Toward Sustainability. Oxford, NYC, 2009  http://www.amazon.com/Two-Billion-Cars-Driving-Sustainability/dp/B0071UPDOA

Jeff Green and Keith Naughton. Woes of Megacity Driving Signal Dawn of ‘Peak Car’ Era, 24/02/2014
http://www.bloomberg.com/news/2014-02-24/woes-of-megacity-driving-signals-dawn-of-peak-car-era.html

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail:jed_alves@yahoo.com.br

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