sábado, 2 de maio de 2015

A sociedade livre, justa e solidária e seus inimigos

Sergio U. Dani, de Berna, Suíça

Uma sociedade é uma organização de indivíduos formada para um determinado propósito ou atividade. A idéia é tão antiga quanto a própria vida. Em princípio, todos os organismos vivos participam de uma grande rede socioambiental formada naturalmente para os propósitos da conservação da vida na Terra, embora muitas das relações entre os organismos, como predação, parasitismo e comensalismo possam parecer »anti-sociais« aos nossos olhos humanos.

No esquema da evolução dos organismos pela seleção natural, alguns grupos alcançaram o status de organismos »eusociais«, entendendo-se o »eu« aqui como a palavra grega para »verdadeiro«, »complexo« ou »refinado«, e não na acepção egoísta do termo em português. Os organismos eusociais praticam a divisão das funções sociais – por exemplo: alimentação, cuidados de higiene, construção de abrigos, e a defesa contra inimigos – visando o bem comum e a manutenção da vida. As formigas e as abelhas são os exemplos mais citados de organismos eusociais. Esses insetos praticam regras sociais rígidas que são, em boa parte, herdadas, como a determinação de sexo e castas baseada na genética, e em menor parte, adquiridas, como a formação e especialização dos indivíduos baseadas na nutrição e no aprendizado.

Os seres humanos somos um caso especial de eusocialidade. No nosso caso, a parte aprendida das regras do convivio social é proporcionalmente muito maior que a parte herdada. A razão disso é o alto grau de encefalização atingido na espécie humana. A encefalização, em si, já é uma »desproporção«. Diz-se que quanto maior o peso do cérebro em relação ao peso do corpo, maior é a encefalização. A encefalização no ser humano criou circuitos neurais e capacidades »em excesso« que podem ser usados tanto para o benefício, quanto para o malefício da sociedade. O conjunto de regras e valores morais, econômicos e politicos de convívio social é estabelecido numa tentativa de direcionar as »capacidades em excesso« para o benefício social ou o bem comum.

Aos principais conjuntos de regras e valores das sociedades ocidentais contemporâneas pertencem a liberdade, a democracia e o cristianismo. A liberdade organiza a produção de maneira eficiente; a democracia busca a participação de todos na vida social e o cristianismo prega o amor ao próximo. O objetivo é construir e manter uma sociedade livre, justa e solidária. O alcance desses objetivos depende, obviamente, das qualidades e capacidades científicas, morais e políticas dos indivíduos e dos povos, da sua capacidade de ver, julgar e agir. A ciência é a arte do solúvel, a justiça é a arte da caridade, a política é a arte do possível.

O alcance desses objetivos depende também da própria forma de organização da sociedade. A transiçao das chamadas »sociedades tribais« essencialmente rurais, em harmonia com a natureza, descentralizadas, desestratificadas e democráticas para as chamadas »sociedades civilizadas«, essencialmente urbanizadas, dominantes da natureza, centralizadas, estratificadas e com monopólio do poder por grupos minoritários ocorreu simultânea e independentemente, em diversas partes do mundo, durante o processo de criação dos Estados nacionais. Um Estado é definido como a organização de um ou mais povos circunscritos em um determinado território, sob o domínio de algum governo.

A civilização, ao concentrar poder e recursos, aumentou a distância entre os povos e as suas bases de sustentação nos ecossistemas naturais e acelerou o processo de degradação socio-ambiental. Esse processo tornou-se mais evidente a partir do século 18, tendo levado a crises socio-economico-ambientais sucessivas e cada vez mais permanentes. A civilização revelou-se inimiga das sociedades e da vida.

Os inimigos menores da sociedade livre, justa e solidária são os ignorantes, os incompetentes e os incapazes. Esses podem ser educados, capacitados, treinados e reintegrados nas funções sociais mais adequadas a cada caso. Os inimigos maiores da sociedade livre, justa e solidária são os mentirosos, os negligentes, os enganadores, os traidores, os irresponsáves, os tiranos, os ladrões e os corruptos. Esses devem ser afastados dos cargos de gestão pública ou privada, e especialmente dos cargos dos governos. Entretanto, a maior de todos os inimigos da sociedade livre, justa e solidária é a civilização. Essa deve ser combatida pela harmonização com as estruturas e os processos naturais, a autonomização dos povos e territórios, a descentralização do poder.

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